Canção dos Anjos
Algumas manhãs nubladas na casa onde cresci, repentinamente sentia uma atmosfera sinistra. Era como se algo tenebroso da noite continuasse, mesmo com o nascer do dia. Lembro que quando era pequeno escutava sussurros no som do vento batendo entre as folhas. Como se as árvores cantassem uma canção profana, que me deixava sonolento só de ouvir.
Durante uma tarde que ventava muito, as árvores pendulavam ferozmente de um lado para o outro, como se dançassem em um ritmo tribal. A vó ficou curiosa ao notar que observava atentamente a paisagem como se estivesse em um transe. Aproximou, em um gesto de afeto repousou suas mãos pesadas nas suas costas , o que trouxe conforto.
Olhou com expressão seria, como quem pensa algo importante. E contou que o misterioso som que rugia floresta adentro, eram os assobios dos Arcanjos. Comentou que os sopros que ecoavam até o fundo do vale, guiavam as almas que se perdiam na floresta, e afugentava os maus espíritos . Afirmou em um tom entre o gentil e o sério, que ficasse atento, pois se escutasse por muito tempo, durante a noite eles me encontrariam. Disse que corria risco de ficar preso dentro do sonho sem poder abrir os olhos, por mais que tentasse. Até nunca mais conseguir acordar, ou se tivesse sorte, não seria mais capaz de dormir, ficando para sempre com a mente desperta. Na tentativa de fugir do medo, gostava de acreditar que eram apenas histórias inventadas.
Até que em uma noite sonhava com a canção do vento, era de uma harmonia suave como se mil flautas em diferentes timbres tocassem a mesma melodia. Algo nela seduzia, e atraia a seguir a origem do som . Caminhava descalço pelo gramado, o orvalho congelado deixavam os pés com tons entre azul e o vermelho por conta do frio. Porém pouco a pouco, aquela canção ia deixando completamente anestesiado, só fazendo sentir um calor refrescante vindo do peito que ficava leve e pesado ao mesmo tempo, a cada passo ficava mais, e mais suave e relaxado.
Desceu até o fundo do vale que estava florido e perfumado com dezenas tons aromáticos quentes. As flores emitiam uma aura luminosa, que disparavam sensações sinestésicas, pelo corpo misturando cheiros, com sabores, cores e e até estímulos táteis, fundindo os sentidos em um só. Tudo era mais belo que usual, como se aquele gracioso som desabrochasse luminosa beleza que estava até então oculta. Talvez por sorte, mas antes de entrar na floresta ouviu uma voz familiar chamando pelo nome, mandando acordar.
Quando abriu os olhos se viu de pé em frente a janela aberta, com vento balançando o corpo igual as ondas em um mar. Ainda sentia um delicioso relaxamento percorrendo toda pele deixando em êxtase. Se surpreendeu quando olhou para cama e viu seu corpo repousando. Não entendia oque estava acontecendo, estava com a consciência confusa por se ver fora do corpo. Quando acordou pela segunda vez ficou reflexivo, achou estranho ter tido um sonho de duas camadas. Por alguma razão estava nostálgico, e sentia o perfume doce da falecida avó, que fez surgir uma paz acolhedora e tranquilizante.
Hoje foi um tanto diferente, acordou com o som de um vendaval intenso no meio da madrugada, seguido de uma palmeira quebrando e caindo provocando um estrondo . Os seus olhos por reflexo se abriram, mas seu corpo não se movia. Por estar escuro não conseguia ver muito bem, mas sentia que algo o observava, e pouco a pouco se aproximava. Até então , nunca sentiu o corpo se arrepiar daquela forma. Era algo além do pavor, como se a própria pele pressentisse que a morte fosse tocá-la em algum momento.
Foi quando viu uma criatura borrada distorcida no espelho, era um semelhante a uma borboleta só que com seis asas, sendo feitas de uma neblina escura . Os olhos eram pretos como a noite, como se fosse a personificação do inverno, fria como o vento glacial. Todos sentidos berravam sinal de perigo . Era um ser exótico, naturalmente indiferente, quase ausente em sua neutralidade, trazia um silêncio ensurdecedor. Produzindo uma pressão que ressoava pelo labirinto dos ouvidos, ecoando por dentro dos ossos, como se entrasse em ressonância, e congelante o âmago .
Piorando a situação, um formigamento surpreendeu suas costas anestesiando e ao mesmo tempo obrigando o acordar. Ainda estava rígido, mas pouco a pouco, o corpo voltou a se mover, mesmo que tenso . O coração pulsava acelerado, suava frio , e as entranhas ainda pareciam formar um nó. Ficou aliviado quando se deu conta que a presença tinha desaparecido, mas estava muito assustado para conseguir relaxar. O corpo parecia ecoar aquela sensação silenciosa. Como se soubesse que ela permanecia escondida no próprio vazio.
Por alguma razão começou sentir um prazer indescritível só por estar vivo. Pela primeira vez a consciência estava desperta e plenamente conectada no agora. Como se até então estivesse sonhando mesmo a luz do dia e só agora despertasse. Apreciava uma sensação majestosa permeando e fluindo por tudo. Como se a essência da vida aflorasse e despertasse depois de uma longa hibernação. Emergia como uma fonte, com um amor puro quase ausente, era belo, sereno e inocente.
Subitamente uma esfera luminosa surgiu na sua frente, era uma bola de fogo com diversos tons de cores, pulsando , e ao mesmo tempo se mesclando, formando cores vivas que nem sabia que existiam. Como um sol, tinha uma presença vivificante, e avassaladora. Seu corpo experimentava a mesma sensação de pavor de antes, contudo por mais que temesse, também se encantava ao contemplar aquele ser. O coração ardia em êxtase, como se queimasse igual as chamas flamejantes de uma fogueira. Era uma dor intensa, que mesclava entre intervalos de sangrar e cauterizar. As feridas do tempo, iam pouco a pouco se curando, dissolvendo as toxicidades e fervendo os entorpecentes que impediam o coração de sentir a leveza da serenidade. Sabia de alguma forma que aquele fogo era sagrado. Tão subitamente como surgiu, também desapareceu, deixando um frescor no ambiente, como perfume de uma flor de menta.
Mesmo não entendendo como, sabia que se tratava da mesma entidade, por alguma razão viu ela projetada nessas duas formas. Aquelas duas sensações opostas possibilitou ver que o macabro e divino é só uma questão de interpretação. O contraste de experimentar tão próximos essas duas facetas, fez entender que a entidade mensageira da vida e da morte são as mesmas. Ambas manifestam o sagrado vivo, que se faz presente no todo
Ao escutar novamente a canção do vento no nascer do dia , sentiu algo diferente. Viu que o medo o fez fantasiar na infância, fazendo interpretar o som do vento como algo sinistro. Entendeu que o mal é apenas uma fantasia humana, tão real quanto um pesadelo ou o medo do escuro. Não era que o ser humano não cometesse “maldades”, ou que não existissem espíritos trevosos. Apenas entendeu que o “mal” é algo que existe dentro da subjetividade negligenciada .
A sombra vive dentro dos corações marcados por feridas envenenadas, entorpecidas, seja com emoções ou pensamentos tóxicos.
A qual a vida é professora que nos amadurece por meio de lições enigmáticas, que nos fere para que busquemos a sabedoria da cura. O utero de Maya-Gaya, nos nutre de entorpecentes, intoxicando por meio de ilusões, desejos, prazeres e sofrimentos. Até despertamos a jornada rumo a fonte essencial do amor. Normalmente buscamos incessantemente fora, as vezes até degustamos um pouco desse mel nas relações mundanas, mas esquecemos que carregamos o precioso pólen dentro do peito.
O amor que mais ansiamos só nós podemos corresponder. O que nos impede de experimentar o genuíno amor propio, no final são as próprias crenças condições e limitações que nos acorrentamos. Só depois que descobrimos que criamos, governamos nosso próprio inferno, e que somos nós o mártir que nos faz refém e nos fere . Podemos nos libertar rumo à luz celestial. A busca do amor em vida nos mata, para que encontremos o eterno que se faz presente no infinito vazio da propia mortalidade.
Ao se esvaziar de tudo que não lhe serve mais, a serenidade automaticamente resurge, e todas barreiras que impediam de amar e desfrutar a vida se diluiem . Nota que não era uma questão de quanto se tinha. No meio de tantas coisas sem valor, encontrou algo essencial dentro de-si, ainda que muito pouco, era o preciso vital que precisava.
Borgeriano